Era uma casa muito engraçada
Não tinha teto não tinha nada
Ninguém podia entrar nela não
Porque na casa não tinha chão
Ninguem podia dormir na rede
Porque...
- Cara. Não suporto esse apartamento. Às vezes dá vontade de fugir por um mês pra esquecer as paredes.
Essas foram as palavras que ouvi dum sujeito amigo meu. Melhor: sujeto(a)s amigo(a)s, incluindo similares de outrem.
Fico chocado com a repugnância que pessoas têm em relação ao troço chamado casa nos tempos que correm agora.
Um francês disse que a verticalização arquitetônica que toma a grande cidade dissolveria a possibilidade da memória afetiva contida na geometria do abrigo. Que a casa, caixa contra-universo, era o assentamento primeiro do Homem, mãe, útero posterior, eu confrontando um cosmos.
Deliravam os metafísicos ao afirmarem 'o menino quando nasce é jogado no Mundo, abismal'.
O menino quando nasce é jogado na casa. Chão-parede-teto ? Só isso ?
Não deliravam aqueles metafísicos, equivocavam-se. Delírio é o que faz do barraco um castelo. E faz-se.
Algo como: não tinha nada, mas me tinha.
Se há concreto, barro, pedra, papelão, se há, o olho do menino sensibiliza. Se não há, inventa, sonha. Em casos, casas são construídas duas vezes. Uma pela mão, outra pelo olho. E disto é feita a casa.
Um grego chamou a casa de base militar: para a guerra lá fora. E se o inimigo sabe duma ordem interna, um par de sandálias emparelhadas num canto, a cólera é inevitável.
Lembrei dos filmes de terror, em que a família compra a casa de outra, que já evaporara. Aparece sangue, vulto, retrato, frases até. Que são os fantasmas dessas belezas cinematográficas senão a memória impregnada reagindo ao inimigo, forasteiro ao qual não houve permissão para entrar ?
Pavor do próprio abrigo, contudo, que diabos ? É possível que o francês tenha arriscado bem, é possível também que o olho do menino seja capaz de sensibilizar o módulo, a repetição, o estrato. Pule de passarinho a pássaro e deixe as grades para onde se acertam, pra fora, pro Mundo, abismal.
Trecho do filme experimental
Deux Fois, de Jackie Raynal, 1968
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