domingo, 12 de agosto de 2012

Tenda

Era  uma casa muito engraçada
Não tinha teto não tinha nada
Ninguém podia entrar nela não
Porque na casa não tinha chão
Ninguem podia dormir na rede 
Porque...

- Cara. Não suporto esse apartamento. Às vezes dá vontade de fugir por um mês pra esquecer as paredes.
 Essas foram as palavras que ouvi dum sujeito amigo meu. Melhor: sujeto(a)s amigo(a)s, incluindo similares de outrem.

Fico chocado com a repugnância que pessoas têm em relação ao troço chamado casa nos tempos que correm agora. 

Um francês disse que a verticalização arquitetônica que toma a grande cidade dissolveria a possibilidade da memória afetiva contida na geometria do abrigo. Que a casa, caixa contra-universo, era o assentamento primeiro do Homem,  mãe, útero posterior, eu confrontando um cosmos.

 Deliravam os metafísicos ao afirmarem 'o menino quando nasce é jogado no Mundo, abismal'. 

O menino quando nasce é jogado na casa. Chão-parede-teto ? Só isso ? 

Não deliravam aqueles metafísicos, equivocavam-se. Delírio é o que faz do barraco um castelo. E faz-se. 
Algo como: não tinha nada, mas me tinha.

Se há concreto, barro, pedra, papelão, se há, o olho do menino sensibiliza. Se não há, inventa, sonha. Em casos, casas são construídas duas vezes. Uma pela mão, outra pelo olho. E disto é feita a casa. 

Um grego chamou a casa de base militar: para a guerra lá fora.  E se o inimigo sabe duma ordem interna, um par de sandálias emparelhadas num canto, a cólera é inevitável.

 Lembrei dos filmes de terror, em que a família compra a casa de outra, que já evaporara. Aparece sangue, vulto, retrato, frases até. Que são os fantasmas dessas belezas cinematográficas senão a memória impregnada  reagindo ao inimigo, forasteiro ao qual não houve permissão  para entrar ?

Pavor do próprio abrigo, contudo, que diabos ? É possível que o francês tenha arriscado bem, é possível também que o olho do menino seja capaz de sensibilizar o módulo, a repetição, o estrato. Pule de passarinho a pássaro e deixe as grades para onde se acertam, pra fora, pro Mundo, abismal.





Trecho do filme experimental 
Deux Fois, de Jackie Raynal, 1968

Nenhum comentário: